quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Lutador

Apesar de divertido aqui e ali, O Lutador é um filme melancólico desde o primeiro plano de seu protagonista: câmera fixa, um homem de costas num vestiário praticamente vazio, o corpo largado numa cadeira, exausto e tossindo, enquanto recebe o mirrado pagamento pelo show que acaba de realizar.

O show em questão, a chamada luta livre (wrestling, em inglês), não é um show qualquer. É realmente uma luta, mas uma luta em que não se mede a força física ou a habilidade de sobrepujar o adversário. O que se mede é a capacidade de provocar o público, seja para o ódio ou a adoração, usando para isso todo o leque disponível à encenação dramática: golpes coreografados, diálogos ofensivos, objetos, luzes, figurino, maquiagem, etc. Não há sangue falso, contudo. O único sangue que jorra é o verdadeiro, e a platéia se regozija ainda mais quando isso acontece.

É inevitável a comparação entre a luta livre e o cinema — a mesma atração pelo espetáculo, a utilização de recursos cênicos e dramáticos e a entrega absoluta de seus melhores profissionais. O próprio enredo de O Lutador reforça a ligação, ao colocar na boca da dançarina Cassidy (Marisa Tomei) a referência ao filme A Paixão De Cristo (2004), de Mel Gibson. Sangue vende ingresso.

Em última análise, é bem possível dizer que O Lutador é um filme sobre a entrega de um artista à sua arte. Ou, indo mais longe, sobre a entrega de um homem ao seu projeto. Golpeado seriamente pela vida (submetido no trabalho, odiado pela filha e rejeitado pela mulher que ama), Randy, o Carneiro (Mickey Rourke) escolhe morrer no ringue, onde tem uma última chance de brilhar e se fazer querido – de se sentir alguém, enfim.

Ao contrário de Rocky (1976), de Silvester Stallone, o filme de Darren Aronofsky não prega a esperança tola e o pensamento positivo. O Lutador não é um compêndio de auto-ajuda. É um tanto mais complexo. Não surpreende que tenha sido quase completamente ignorado no Oscar, em detrimento de O Curioso Caso de Benjamin Button e Quem Quer Ser Um Milionário? Não espanta também que muito se fale sobre a “ressurreição” de Mickey Rourke (sua vida pessoal, sua passagem pelo boxe, suas cirurgias plásticas e até seu cachorro de estimação), enquanto pouco se fala sobre o filme em si e sobre a obra do diretor Darren Aronofsky. Quem, no mundo de hoje, quer falar sobre a tristeza e a perda, sobre a morte e a angústia do irreconciliável, sobre a miséria humana?

Pouca gente, de fato. Aronofsky é um. Seu trabalho anterior, Fonte Da Vida (2006), é um mergulho radical no tema da morte. Pouca gente gosta do filme porque, nele, Aronofsky mistura mitologia, teologia e zen-budismo para criar uma alegoria que à primeira vista pode parecer constrangedoramente afetada e até hermética. Sua mensagem, no entanto, é bem simples: a vida não pode ser controlada e não há motivo para temer a morte. Fonte Da Vida reforça a imagem de Aronofsky como “cineasta-cabeça”, imagem essa criada e cultuada a partir de Pi (1998). Ali, ele também afirma: a vida não é para ser decifrada, é para ser vivida.

E em O Lutador? Aqui, Aronofsky parte para um cinema cru e direto. Das luzes fortes dos ringues às sombras dos trailers alugados, sua câmera sóbria e realista acompanha toda a jornada de Randy até sua decisão final. Sem malabarismo visual, apresenta um pouco dessa América dos bastidores, das periferias, dos trabalhadores braçais e das dançarinas de boates. Sem discurso demagógico, diz algo sobre a dignidade e a solidariedade que sobrevivem à falta de dinheiro e à engrenagem produtiva.

Na cena da tarde de autógrafos, Randy olha para os ex-lutadores ao seu lado – cabisbaixos, estropiados, esquecidos – e provavelmente imagina que não quer ter o mesmo fim. Como a vida faz questão de lhe provar, fora do ringue, ele e todos os outros lutadores, antes cheios de glórias, são apenas homens comuns, achacados por problemas de saúde, chefes calhordas e responsabilidades que não capazes de cumprir. Ao subir nas cordas do ringue pela última vez e voar em direção ao obscuro, Randy então se nega ao ordinário.

Quem Quer Ser Um Milionário? é o grande vencedor do Oscar e é um filme razoável, apesar de tudo (apesar de todas as fórmulas que ainda estão lá, disfarçadas sob a fachada de sinfonia pop criativa). Mas se há um filme minimamente humano e honesto em cartaz no grande circuito, ele é O Lutador.


*Esse texto é uma espécie de "versão alongada" de um comentário que escrevi para o blog do professor Lisandro Nogueira.

* Trailer do filme:

Um comentário:

Aline Mil disse...

Vou ver no domingo pra poder comentar a resenha!! :)