segunda-feira, 18 de maio de 2009

Como nasce o mito de "Che"


A certa altura de Che, em cartaz na cidade, o diretor de estúdio da rede americana CBS interrompe uma entrevista do guerrilheiro: “Corta!” Brevíssima, a cena pode passar despercebida, embora não esteja ali por acaso. É mais um momento em que o diretor Steven Soderbergh sublinha uma questão fundamental para a obra: toda história é uma história contada — e, portanto, sujeita à edição, à manipulação consciente e inconsciente, ao esquecimento e à interpretação.

O Che de Soderbergh não é o Che sanguinário da direita raivosa; tampouco o Che santificado da esquerda ingênua. O Che de Soderbergh é o Che midiático. É consciente da carga simbólica que a imagem do revolucionário carrega que o diretor parte para uma operação cinematográfica sutil. Não, Soderbergh não desconstrói o mito. O que ele faz é criar sua própria versão do mito, ressaltando, aqui e ali, a influência da mediação na construção da realidade.

Em resumo, o longa-metragem narra a transformação do médico argentino Ernesto Guevara no Comandante Che — líder guerrilheiro e herói popular em Cuba. O personagem é vivido pelo ator Benício Del Toro, premiado em Cannes 2008. Também produtor, Del Toro está envolvido no projeto desde o início da década, primeiramente com a intenção de representar a fase final da vida de Che, sobretudo sua passagem pela Bolívia, onde é assassinado. O trabalho de pesquisa, porém, levou à decisão de estender o período coberto pela obra e, consequentemente, à sua divisão em duas partes. O filme atualmente em cartaz em Goiânia é a “Parte 1”, de contextualização. A “Parte 2”, que materializa o projeto original, está prevista para estrear no Brasil em 31 de julho.

Che, portanto, é uma obra ainda incompleta. O que se pode depreender dessa metade inicial é que o processo de contar a história (storytelling) é tão importante para o diretor quanto a história em si e o realismo da representação. O uso do preto-e-branco e da câmera instável nas sequências novaiorquinas, por exemplo, pode ser relacionado ao gênero documental; já a cor e a luz das cenas em Cuba criam uma ambientação naturalista para o quadro. Os dois artifícios contribuem para o realismo. Mas a constante alternância de registros, ligados que estão aos saltos temporais (flashbacks e flashforwards), chama a atenção para a montagem e expõe o esqueleto do filme — o roteiro. O resultado é um distanciamento do storytelling clássico e a exigência de uma nova postura por parte do espectador, que se vê diante de outro tipo de organicidade. A imagem do Che de Soderbergh não é dada pronta. Ela se forma a partir de pedaços (às vezes complementares e por vezes contraditórios).

Para chegar a esse Che, é preciso coletar os fragmentos espalhados ao longo do filme em variadas instâncias representativas e narrativas. A encenação e o “voice over” são duas das principais; contudo, outras mediações estão incorporadas ao enredo, ainda que com papel menor ou mesmo simbólico (a entrevista, a reportagem de televisão, a transmissão radiofônica, a tradução do intérprete, etc). Ao compor visualmente esse mosaico, Soderbergh mostra um Che rodeado por “construtores de realidades e irrealidades” (repórteres, editores, fotógrafos, tradutores, professores e, claro, Fidel Castro, estrategista sempre atento ao “efeito psicológico” da ação).

É nesse contexto que nasce o mito de Che, alvo da investigação do filme. Se ele se parece verdadeiramente com o homem morto em outubro de 1957, em La Higuera, é outra história. Mas aqui está um bom ponto de partida para a reflexão.

OBS: Texto originalmente publicado no Blog do Lisandro Nogueira.

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