quinta-feira, 21 de maio de 2009

Artigo / "Lições do cinema universitário"


Carlos Cipriano*

A análise mais atenta das produções exibidas na 2º Miau – Mostra Independente do Audiovisual Universitário, que terminou no domingo no Centro Cultural Goiânia Ouro e cujos filmes estão sendo reprisados no mesmo local (confira programação na página 7), revela o quanto nós goianos ainda estamos atrasados em relação ao ensino e ao aprendizado do audiovisual. O problema não está apenas na histórica inexistência de um ensino formal de cinema em Goiás ou no descaso e incompetência das faculdades públicas e privadas que oferecem cursos deficitários, com equipamentos ultrapassados.

O problema também está na ausência de um pensamento cinematográfico entre a maioria dos realizadores goianos, tão preocupados em ocupar o espaço oferecido pelos festivais locais e ganhar seus prêmios que esquecem que o domínio da linguagem audiovisual depende da ampliação do repertório pessoal de referências e da atualização da cultura cinematográfica. Mais uma vez, a grande maioria dos realizadores locais não compareceu ao Cine Ouro nas sessões e debates da Miau e desperdiçou outra oportunidade de aprendizado que nos foi ofertada.

Sem dúvida, o desprezo pelo audiovisual universitário mascara um receio de ser confrontado – pois a comparação é inevitável. E o confronto já começa a despertar a percepção do público de que vários desses aprendizes conseguem voar mais alto em seu trabalho de estreia que os goianos, mesmo aqueles com tempo de estrada.

Vejamos se não é verdade: o que um vídeo como A Luz Vermelha do Bandido, eleito o melhor documentário da Mostra Sete Vidas da 2º Miau, tem a ensinar? Realizado pelo estudante paulista Pedro Jorge (da Anhembi Morumbi), o documentário retoma o primeiro longa-metragem de Rogério Sganzerla, O Bandido da Luz Vermelha (1968). O que este filme representou em termos de modernização e ousadia, no conturbado momento político pelo qual o País passava? Os depoimentos de Helena Ignez, Júlio Bressane, Jean-Claude Bernadet, Inácio Araújo, Carlos Reichenbach, Ivan Cardoso, dentre outros, nos dão uma dimensão do talento excepcional de Sganzerla, que aos 23 anos conseguiu criar um marco da cinematografia nacional.

A homenagem se estende aos aspectos formais do documentário, traduzida na recriação do estilo inconfundível do filme, com sua câmera indecisa, sua montagem nervosa e fragmentada, seu som fugidio. Daí a opção pelo estilo radiofônico, pelos travellings nas ruas de São Paulo, pelos letreiros luminosos que reproduzem trechos do Manifesto Fora da Lei, escrito por Rogério enquanto realizava seu filme. Recorrendo a procedimentos da ficção, o vídeo recria cenas consagradas pelo ator Paulo Villaça no papel do Bandido, aqui vivido pelo cantor Seu Jorge.

Há também a intervenção da figura de um apresentador de TV, desses que mostram perseguições policiais e fazem discursos exaltados, para invocar o diálogo de Rogério com Orson Welles e Godard, na frente de um chroma key de mau gosto proposital. Produzido com orçamento diminuto, o documentário vai buscar nos vídeos do Youtube cacos de imagens e sons para contar sua história fragmentada e repleta de referências, respondendo ao desafio de fazer uma homenagem sem cair na tentação reducionista de usar cenas do longa.

O documentário não é o único exemplo de lição que a Miau proporcionou. Vários outros poderiam ser citados. Premiado como o melhor filme do festival, o curta Sobre um Dia Qualquer, dirigido por Leonardo Remor, da Unisinos (RS), é uma ficção que surpreende pela imprevisibilidade. A narrativa lacônica começa com os planos que apresentam uma fábrica, para depois introduzir seus personagens: operárias que chegam para mais um dia de trabalho. Mulheres trajando uniformes cinzentos, cuja tarefa é empacotar lápis de cor numa esteira.

O filme não particulariza as mulheres, não nos leva à identificação com elas, nem dá nenhuma pista do que poderá acontecer até que ocorre uma pausa para a refeição. Uma delas se isola no refeitório. Ela assiste à TV, onde vê uma porção de coelhos brancos. Corte para uma animação absurda com coelhinhos (seria uma alucinação premonitória?). Fim do expediente. Saída das operárias. A que assistia TV decide ficar. Ela caminha pelos corredores escuros até chegar ao local onde se encontra uma inusitada gaiola com coelhos. Apanha um deles e foge paranoica, para soltá-lo num gramado.

Enquanto a câmera é suspensa pela grua, a mulher e o coelho caminham numa ilha que separa as duas pistas de uma rodovia movimentada. Sem dizer uma só palavra, o filme induz a uma inquietação e à reflexão sobre os estreitos limites de nossa liberdade, lembrando a frieza e a solidão imposta aos indivíduos que habitam os grandes centros urbanos.

Os mais atentos perceberão que não só pela diversidade de temas, propostas estéticas e modelos de produção os universitários têm muito a ensinar. Mas também por uma postura mais humilde e coerente dos diretores que visitam a cidade: eles reconhecem a importância de seu ofício, mas não se deixam tomar pela vaidade característica da categoria.

Ainda não percebemos que Goiânia se tornou, nos últimos anos, a capital brasileira dos festivais universitários, com a criação de uma mostra específica para os estudantes locais no Festcine Goiânia (2005), do festival latino-americano Perro Loco (2007) e da Miau, de abrangência nacional (2008). Nenhuma outra capital reúne condições tão privilegiadas para a atualização de sua cultura cinematográfica, ao receber um conjunto de produções que apontam tendências e lançam as futuras gerações de diretores. Atualizar-se com a produção audiovisual feita nas universidades, é importante para quem se preocupa em não produzir filmes e vídeos ultrapassados do ponto de vista da linguagem, fora de sintonia com o cinema que ainda está por vir.

A contribuição mais evidente e imediata dos universitários, que raramente dispõem de recursos financeiros provenientes dos mecanismos de incentivo à cultura, pode ser resumida na frase de Carlos Reichenbach, quando cita Paulo Emílio Salles Gomes (extraída do documentário premiado na Miau): “o cinema brasileiro é um dos poucos cinemas do mundo que consegue transformar a falta de condições em elementos de criação”.

No entanto, a contribuição mais importante e duradoura só será reconhecida quando os estudantes de Goiânia se atreverem a ousar nos roteiros e na direção, com filmes instigantes, que transformarão o cinema goiano em um cinema adulto; e o público se tornar mais exigente, à medida que os filmes universitários consolidarem o pacto de inventividade com a plateia de seus festivais.

*Carlos Cipriano é professor do curso de Comunicação Social – Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

OBS: Texto originalmente publicado no caderno Magazine, de O Popular, em 15 de maio de 2008.

4 comentários:

Aline Mil disse...

Cipriano Capa Preta foi meu professor, orientador e amigo lá na famigerada Cambury. Gosto muito do que ele tem a dizer. O protesto que ele faz no texto é absolutamente legítimo. E eu espero que ele não perca nunca essa esperança que ele tem e fomenta no audiovisual goiano. Os egos aqui em Goiás são tão altos que às vezes me perco.

Beijos!

Rodrigo disse...

Marco,
Muito bom este texto do Cipriano. Merece a reprodução!

Deputada Cilene Guimarães Escritorio Virtual disse...

Parabéns pelo Blog!

Marco A. Vigario disse...

Oi, Aline e Rodrigo!
Não conheço o Cipriano pessoalmente, mas concordo com o que ele diz: a galera precisa de se preocupar mais em pensar o cinema. O que tá faltando na produção goiana não é técnica, é idéia!