quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Entrevista / Francisco Elinaldo Teixeira


"O documentário é o
laboratório de experimentação
da linguagem audiovisual"

Professor de cinema na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, Francisco Elinaldo Teixeira é uma referência nacional em matéria de documentário. Graduado em Ciências Sociais e pós-doutorado em Artes, tem dois livros publicados: Documentário no Brasil - Tradição e Transformação e O Terceiro Olho: Ensaios de Cinema e Vídeo. Durante o XI Festival de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), realizado em junho, ministrou uma oficina sobre o assunto e participou do júri oficial da mostra competitiva. Entre uma aula e uma sessão de filmes, conversou a reportagem. Contou que gosta de andar e fotografar a Cidade de Goiás, e que o fragmento do barroco presente ali o transporta para o século XVII. Esse olhar curioso Elinaldo usa também para desenvolver um trabalho artístico de colagem. “É algo bem pessoal. Não gosto de exposição”, explica. A atividade, porém, é quase uma ilustração prática de sua definição teórica para arte: “A arte se move entre dois extremos: de um lado, fugindo do consenso, do que já está dado; de outro, tentando dar uma forma ao caos”.

Você costuma dizer que o documentário é um renovador da cultura audiovisual. Já ouvi também que o documentário brasileiro hoje é mais importante que a ficção. Qual é exatamente o papel do documentário no cinema brasileiro hoje?
O documentário tem esse relevo no mundo inteiro. Isso em função de uma história em que o documentário sempre foi peça menor e meio chata dentro da cultura audiovisual. Dos anos 80 em diante, isso muda, por uma série de razões, e num momento em que o grande burburinho é em torno da saturação da cultura audiovisual: excesso de exibição, de amostragem... O documentário entra aí e começa a ganhar relevo, operando uma renovação muito grande. Há uma reiteração da tradição documental, ou seja, das escolas, dos movimentos, das estilísticas anteriores, mas com um dado novo: o documentário se volta, depois de explorar o outro durante décadas, para o trabalho sobre si mesmo e sobre o próprio entorno. É uma problemática teórica que vem dos anos 70: a ideia do cinema subjetivo. No Brasil, o marco dessa renovação é o Cabra Marcado para Morrer [1985], do Eduardo Coutinho. Cabra Marcado foi um documentário que circulou nos cinemas naquele momento. O espectador começou a se relacionar com o documentário como uma peça artística de universo próprio, autônomo, exclusivo. Isso foi se adensando nos anos 90 e na entrada dos anos 2000. No caso do Brasil, o documentário tem hoje um papel que tem também no contexto mundial: o da renovação da linguagem audiovisual. Mas não sei se ele seria mais importante que a ficção.

Seria mais ousado que a ficção?
O documentário é, hoje, o laboratório de experimentação da linguagem audiovisual. E isso tem enorme importância. Há um trabalho de renovação permanente.

A ficção frequentemente busca no documentário elementos para renovar a sua própria linguagem. O que a ficção quer do documentário: a aura de verdade, a diversificação de elementos visuais...?
É um fato curioso. Na história do documentário essas trocas e experimentações entre ficção e documentário nunca cessaram. Há um momento de grande afastamento, que são os anos 20, momento de fundação dos vários domínios do cinema. No pós-guerra, com o neorrealismo, há uma reaproximação. Numa escola como a do cinema autoral, há uma tentativa de mostrar que é besteira pensar os domínios ficcional e documental como opostos. Há, num cineasta como [Jean-Luc] Godard, a ideia de que são dois momentos da realização cinematográfica presentes no mesmo filme e em troca sempre muito intensa. Nos anos 20, os franceses têm uma proposição fundamental: o documentário como um ponto de vista documentado. E Godard, quando fala que os dois momentos estão presentes no filme, pensa sempre nessa proposição do Jean Vigo: a ideia de que o filme, por mais ficcional que seja, é a documentação de um olhar, de uma perspectiva sobre as coisas, o mundo, a realidade... Acontece que, dos anos 80 pra cá, essas trocas se tornaram mais intensas. Por conta desse relevo e dessa ampliação e expansão da audiência que o documentário ganha, a ficção vai um pouco atrás disso para renovar as suas formas. Nos anos 20, o documentário também foi buscar [elementos] na ficção. Hoje em dia a oposição entre realidade e ficção, que antes foi tão marcante para diferenciar esses domínios, não faz mais o menor sentido. Já se ultrapassou esse debate.

A própria definição de documentário hoje é complexa. É possível definir o que é documentário em poucas palavras?
As definições, quando muito, servem como orientação. O documentário mantém, sim, a sua singularidade enquanto domínio do cinema. De certa forma, hoje se mantêm os três grandes domínios formados nos anos 20: o ficcional, o documental e o experimental. Só que as fronteiras são menos visíveis, o que não significa que haja confusão. Não gosto da ideia de confusão, no sentido de que não se pode mais distinguir as coisas. Isso é loucura. As fronteiras hoje são menos visíveis e as trocas, muito intensas. Às vezes, dentro do mesmo filme, tem-se os três domínios operando trocas entre si. Há hoje, no plano teórico e acadêmico, um consenso mínimo a respeito do documental: essa ideia bem fundamental de que o documentário opera com asserções sobre o mundo. Isso não é específico do documentário, mas o documentário faz isso de uma maneira muito particular: o corpo a corpo do cineasta-câmera com a realidade histórica e natural é bastante visível.

O documentário brasileiro tem uma identidade própria?
É preciso ver isso sob o ponto de vista histórico. Quando Glauber Rocha escreve Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (publicado pela primeira vez em 1963), ele coloca a mobilização em torno da realização do documentário como fundamental para a emergência do Cinema Novo. Destaca, basicamente, dois grandes documentários do final dos anos 50 e início dos 60: Aruanda, do Linduarte Noronha, e Porto das Caixas, do Paulo César Saraceni. Esses documentários foram todos feitos com uma base técnica pré-moderna, ou seja, sem sincronização entre imagem e som. O que era moderno nesses documentários então? Segundo Glauber, era o modo de recortar a realidade brasileira. São documentários que elaboram uma visão da realidade brasileira de maneira dialética, conforme o trabalho intenso do pensamento daquele momento, as diversas correntes de esquerda... No final dos anos 50, momento em que se opera no mundo todo a renovação do documentário clássico com o documentário moderno, no caso internacional com a fetichização da base técnica, o Glauber vai dizer: “Não, não precisa da base técnica. Ela não é tão determinante assim. No Brasil não se tem essa base técnica e no entanto há uma renovação numa linha bastante moderna do documentário”. O próprio Glauber, nos anos 70, faz um documentário revolucionário do ponto de vista da linguagem [Di Cavalcante Di Glauber], antecipador do documentário contemporâneo em muitos aspectos, com uma base pré-moderna. Ou seja, a limitação técnica nunca foi uma limitação para a criação.

Hoje o acesso a tecnologia é fácil. Muita gente tem uma câmera digital no celular, por exemplo, e são produzidas imagens aos borbotões. Essa revolução tecnológica tem impacto importante no campo da estética?
É quase impossível pensar na questão da imagem na modernidade sem levar em conta a relação entre a técnica e a arte. Da modernidade pra cá, a intimidade entre esses dois elementos se tornou muito intensa. O que acho, e aí volto na questão de que as coisas mantêm sua singularidade apesar da diluição das fronteiras, é que a relação entre a arte e a técnica hoje é muito mais complexa. Há toda essa discussão sobre a saturação da cultura audiovisual. E um dos elementos dessa saturação é a ideia de que a reprodutibilidade técnica assumiu o controle do processo de criação. Seguindo a linha do Walter Benjamin, a cultura audiovisual se democratizou muito mais, mais pessoas podem criar peças audiovisuais, mas é preciso manter uma série de critérios para distinguir o que é arte nessa floresta de produções que a tecnologia propicia hoje, da internet às câmeras digitais. Nem tudo é arte. Arte é pensamento. E o que faz o pensamento? O pensamento opera em duas condições impostas pelo mundo exterior: de um lado, tem-se o caos, caos como impossibilidade de dar forma às coisas devido ao movimento intenso que pressupõe uma situação caótica sempre; de outro lado, tem-se o estabelecido, o senso comum, o bom senso, o consenso, o que é dado. A arte se move entre esses dois extremos. De um lado fugindo do consenso, do que já está dado, e fugindo no sentido de que não tem nada de arte em simplesmente reiterar o que já está dado. De outro lado, tentando dar uma forma a esse caos, que é um desafio o tempo inteiro.

Você participa de vários outros festivais além do Fica. De forma geral, que avaliação faz da produção que circula nesses eventos?
No campo ambiental, existe um militantismo muito forte já há três ou quatro décadas. Num festival como esse, em que se tem que escolher 27 filmes de um peneiramento de 500, entre longas, médias e curtas, tem-se um conjunto desses filmes que trata a questão ambiental de um ponto de vista exclusivamente ambiental, sem grandes preocupações com a questão formal e estética, ou seja, privilegiando o conteúdo e, portanto, uma dicotomia que não faz mais o menor sentido, que é a oposição entre forma e conteúdo. Isso foi superado já no começo da modernidade. A ideia de que não há arte revolucionária sem forma revolucionária, que vem lá dos russos, [o poeta Vladimir] Maiakóvski... Concordo plenamente com isso. E num festival como esse você tem um conjunto de filmes ainda muito marcado por essa dicotomização, um militantismo em relação à questão ambiental que acaba tornando inócuo o próprio trabalho da realização. Quase sempre são filmes com uma incontinência discursiva muito grande: as pessoas falam, falam, falam, dão depoimento, dão entrevista, vai pro especialista, volta pra vítima... Repetem uma linha documental muito marcante na escola inglesa, do começo do cinema documentário. O pensamento e a produção do documentário inglês é conduzido por John Grierson nesse sentido: de uma grande vitimização das personagens. Isso se reitera muito nesses documentários sobre a questão ambiental, e de uma forma prejudicial à eficácia do discurso. Quase sempre são filmes feitos por ambientalistas com pouca preocupação estético-formal. São realizadores muito preocupados com a questão da comunicação, a ideia de que tem que passar uma mensagem, dar uma informação... Uma certa fetichização da comunicação. Bom, e isso num momento em que a ideia de comunicação se complexificou, ficou sofisticada. Hoje se dispõe de um mundo de informação que precisa ser filtrado, selecionado, elaborado. Não pode mais ser uma comunicação tão direta, sem mediação. Nesse ponto, a dimensão formal e estética é fundamental pra eficácia disso que é mais defendido. No caso dos cineastas vindos da formação propriamente audiovisual e trabalhando a temática ambiental, há um equilíbrio maior entre a preocupação com a comunicação e o como fazer isso. Nessa mostra atual do Fica, isso é muito visível: de um lado, filmes feitos por cineastas com conhecimento de causa que vão pra área ambiental, tentando equilibrar as duas dimensões [estética e formal]; de outro, filmes de quem vem da área ambiental, com dificuldade de lidar com a questão formal e estética do cinema. No conjunto, esses são os piores filmes. Às vezes acho que eles prestam um desserviço à questão ambiental.

Pra onde caminha o documentário nesses anos 2000?
Nos anos 2000, uma novidade que há em relação à década anterior — momento de grande renovação do documentário — gira em torno de dois debates. Uma debate mais restrito diz respeito a uma estilística que se vem nomeando de forma muito imprópria como documentário autobiográfico, de autoretrato, para alguns poético, para outros ensaístico, performático... A tendência maior hoje do documentário é a pesquisa e a investigação na linha do entorno do cineasta. É como se, de repente, o documentarista se tornasse um antropólogo de si mesmo, seguindo aí uma mudança muito grande no campo das ciências humanas do pós-guerra pra cá. Antes havia a preocupação com o outro, com o exótico, com o distante. Filmar o outro sempre foi um tema do documentário. E de repente, com a reemergência do valor do documentário nos anos 80, se distingue muito a preocupação com o próprio entorno. Considero que é onde se produz hoje os documentários mais instigantes, mais inquietantes, que desafiam mais o trabalho de criação. Por outro lado, há a continuidade. Estamos falando sempre de tradição e transformação. Tradição, continuidade da tradição e transformação da tradição. Tem-se hoje, aqui mesmo no Fica, documentários que você olha e pensa: “Nossa, isso é anos 20, anos 30”. Pra gente ver também como isso é eficaz... Ele se mantém com grande interesse pra um determinado tipo de público. É o que chamo de documentários mais institucionais. Outros teóricos chamam de documentário-cabo, no estilo das TVs fechadas, National Geographic. BBC de Londres, documentários mais tradicionais, com a voz do saber, o voice over, comandando o processo. Ou seja, a questão da informação e da comunicação colocada de maneira privilegiada. São documentários bastante centrados no conhecimento prévio que o documentarista tem da realidade, e que o processo do filme não altera, só reitera. São documentários em que a imagem, que deveria ter privilégio, às vezes é acessório da palavra. Quando falo de heterogeneidade, é a presença dessas várias tendências e estilísticas. O problema em relação às tendências mais tradicionais é que, embora a cultura estimule muito hoje o diálogo com a tradição, esse diálogo precisa ser crítico. A tradição é importante, mas não se pode ficar só na reiteração e na reprodução da tradição. É o que chamo de documentários de descoberta, por um lado, e de invenção, por outro. No documentário de descoberta, o documentarista descobre uma estilística como se aquilo fosse uma novidade e às vezes não consegue sair disso. Já o documentário de invenção mantém uma relação muito mais crítica e rica com a tradição. Ou seja, partindo do que foi dado pela tradição, renova essa tradição. Não esquece que o repertório cultural anterior é importante, mas que é preciso ultrapassá-lo.

Quais documentaristas brasileiros fazem trabalhos de destaque hoje?
Eduardo Coutinho e João Moreira Salles são dois cineastas bastante afinados, ao longo de suas obras, com as estilísticas modernas do cinema direto e do cinema verdade. Eles reiteram e renovam esse repertório anterior. Na nova geração, há documentaristas que, às vezes no primeiro filme, já entram nessa corrente do documentário contemporâneo. E aí eu considero uma inovação grande no documentário brasileiro dois filmes: 33, do Kiko Goifman, e Um Passaporte Húngaro, da Sandra Kogut. São filmes de 2002 e 2003 que talvez tenham introduzido, em relação à década anterior — que acaba com grandes filmes, Santo Forte, do Eduardo Coutinho, Notícias de uma Guerra Particular, do João Moreira Salles, e Sobre os Anos 60, do Jean-Claude Bernardet... Esses dois filmes (33 e Um Passaporte Húngaro) inauguram uma coisa mais atual, que é essa questão de fazer uma antropologia de si mesmo. São hoje referenciais pra esse tipo de estilística. Tem um cineasta do Mato Grosso do Sul, o Joel Pizzini, que vem fazendo um trabalho importante tanto na área de documentário como de ficção, mas sobretudo de documentário. 500 Almas é um documentário importante nessa segunda metade de década. Quem mais? Lucas Bambozzi e os mineiros que vêm da videoarte, como Cao Guimarães. Eles usam o repertório da videoarte para renovar o documentário e estão muito presentes nesse começo de milênio.


Obs. 1: Entrevista publicada originalmente (e resumidamente) na Tribuna do Planalto.
Obs. 2: Crédito da foto para Marcos Roberto dos Santos.

6 comentários:

Lisandro Nogueira disse...

Marco Aurélio, entrevista muito boa. Guardei as referência para suar no meu próximo curso de "Cinema documentário".

Você conseguiu tirar muita coisa do prof. Elinaldo. Parabéns!!!

Loren disse...

Ola Marco Aurélio, sou estudante de Rádio/TV na Faculdade Canção Nova de Cachoeira Paulista e estou fazendo um interdisciplinar, meu autor é o senhor Francisco Elinaldo, mas não estou conseguindo entrar em contato com ele. Vi sua entrevista e queria saber se pode me ajudar a falar com ele?
Agradeço pela atenção.

Marco Aurelio Vigario disse...

Fiz essa entrevista pessoalmente em 2009 no Fica e não guardei contatos. Encontrei um e-mail na internet: franciseli@uol.com.br. Talvez ajude. Abraço e boa sorte.

Loren disse...

Então Marco Aurélio, eu mandei mensagem nesse mesmo e-mail ja faz umas semanas e ele não responde. Falei com minha orientadora e ela nos deu a opção de te entrevistar no lugar dele (por ja ter tido contato com ele, dai refazemos as perguntas a respeito dele para você), se você concordar, é claro. Ia nos ajudar muito!!!
O que acha?

Marco Aurelio Vigario disse...

Me mande um e-mail para mavigario@gmail.com. Vou te passar o contato de uma pessoa mais indicada para essa entrevista.

Loren disse...

Muito obrigada pela ajuda Marco Aurélio, vou te encaminhar um e-mail.